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Contos degustação

A fórmula da

paz mundial

 

- E qual era a equação que Plínio inventara e que é título deste conto?

- Paz = 1/ego.

 

- Simples assim?

- Simples assim.

 

- Essa fórmula traria a paz mundial?

- Era o que Plínio afirmava com veemência e cuspindo um pouco de baba, às vezes.

 

- Como ele explicava a equação?

- Se o ego de um país é muito grande, a fraqueza de sua diplomacia é evidente. Se essa fraqueza diplomática (ego) tende a zero, todos os países obedecem a tratados internacionais e a paz tende ao infinito.

 

- Eles estavam em uma conferência da ONU?

- Não. Estavam apenas bêbados num bar.

 

- Do que é composto o ego?

- Memória (representando o passado), Ira (presente) e Lucro (futuro). Se cada um desses componentes chegar perto de zero, a paz, do outro lado da equação encosta no infinito.

 

- Como funciona o componente Memória?

- Imagine os dois inimigos mais violentos se esbarrando na rua. Se eles têm memória, pintariam a calçada de vermelho em dois segundos.  Se sofressem amnésia instantânea, até pediriam desculpas um para o outro.

 

- E o componente Ira?

- Desequilíbrio hormonal e das glândulas hipófise e suprarrenais frente a uma situação estressante que alteram todo o bom funcionamento do organismo e diminuem sua racionalidade. Nenhuma ação ou decisão pode ser tomada no meio desse caos biológico.

 

- Por fim, o componente Lucro?

- Quando um país tem muito a perder com a guerra, não tem incentivo para usar a força e prefere dialogar. Imagine que todos os países tivessem a Arma do Juízo Final, que dispara bombas atômicas automaticamente sem possibilidade de interceptação. Equilíbrio de Nash ótimo: ninguém ousa atacar primeiro.

 

- Quando é correto ignorar a fórmula da paz?

- Quando o ataque do agressor é físico e não cessa antes de dar cabo à vida do agredido. Uma reação violenta em legítima defesa é a única violência justificável.

 

- Não deveria haver um componente de Justiça na equação?

- Não. A paz não necessariamente é justa, porque paz é absoluta, é a ausência de conflito. Já a justiça é relativa às crenças de cada lado no conflito. Ou você busca uma ou outra.

 

- Plínio não achava isso uma pena?

- Uma desgraça total, uma ironia divina bem sacana.

 

- Eu entendi bem? Eles estavam em uma conferência da ONU, certo?

- Não. Estavam apenas bêbados em um bar.

 

- O que tem a ver a Equação da Paz Mundial para a situação deles?

- Ela é aplicável tanto a conflitos macro quanto a conflitos micro.

 

- Era isso que Plínio tentava explicar a Pedrão, Ricardinho e Lucas?

- Sem muito sucesso.

 

- Qual era o protesto de Pedrão?

- Que ele era apenas um covarde.

 

- E de Ricardinho?

- Que já tinham demorado pra descer o cacete no folgado.

 

- E de Lucas?

- Lucas estava com grau alcoólico tendendo ao infinito, mal parava em pé e apenas soltava grunhidos.

 

- Então Plínio não conseguiu convencê-los de usar o componente Memória da fórmula da paz?

- Discutiram sobre manter a honra; e honra alimenta o ego; e ego grande (diplomacia fraca) diminui o outro lado da equação, elimina a paz.

 

- Não respondeu à pergunta.

- Plínio refletiu tipo “quem sou eu pra resolver todos os problemas do mundo, né?”

 

- Foi isso que ele falou para Pedrão, Ricardinho e Lucas?

- Não. Isso ele só pensou. O que saiu de sua boca foi só um “foda-se”.

 

- Qual o tamanho do embate de forças?

- Quatro contra um.

 

- Exatamente quatro contra um?

- Três contra dois, na verdade. O folgado era grande e valia por dois. Lucas só soltava grunhidos e tombou no primeiro golpe (que deu na parede, muito longe da confusão, estava realmente perdido). Portanto, três contra dois, na verdade.

 

- Qual a sequência do confronto após o “foda-se” de Plínio?

- Empurrão, xinga mãe, xinga vó, cuspida na cara, copo voador, esquiva rápida, parede quebra copo, soco no ar, esquiva e soco na mandíbula de Pedrão, gritaria, chute nas costas, queda do folgado, pernas agarradas, tombo, ai meu deus, clarão-octógono na galera, palavrões, ménage de jiu-jitsu, estrangulamento, puxões de cabelo, gritaria, mordida no braço, Ricardinho solta o mata-leão, cotovelada na nuca de Plínio, Ricardinho monta no folgado, seguidos socos no nariz, mão vermelha, chão vermelho, gritaria, empurra-empurra, seguranças chutam todo mundo pra fora.

 

- Qual o saldo?

- Ninguém morto, apenas feridos na calçada. Plínio com dor na nuca, Pedrão com mandíbula deslocada, Ricardinho com a mão ralada e Lucas soltando gemidos sobre um possível pulso quebrado.

 

- E o folgado?

- O folgado também não usava a fórmula da paz.

 

- Ele também foi expulso do bar?

- Sim. E correu para o carro com a cara ensanguentada.

 

- Então ele ia fugir?

- Se usasse a fórmula da paz, sim.

 

- O que o movia?

- A briga (já no passado), a fúria (ainda no presente) e o que tinha a lucrar (dali dois minutos): a satisfação da vingança.

 

- O que ele tinha que lhe traria lucro?

- Uma arma no porta-luvas.

 

- O que acontece dali a dois minutos?

- Ele aponta a arma para os quatro amigos.

 

- Qual a situação deles nesse momento?

- Só têm a perder. Com Lucro zero no componente futuro da fórmula, desejam a paz e imploram para o folgado não fazer besteira.

 

- Plínio também?

- Sim, com um pouco de baba.

 

- E Lucas?

- Apenas com grunhidos, mas não incentivava mais a violência.

 

- O que fez o folgado acertar a primeira bala em um poste longe dali?

- Um nível alcoólico alto e nenhuma aula de tiro no currículo.

 

- Qual a atitude dos quatro amigos?

- Correram desesperados.

 

- Todos chegaram a seu objetivo?

- Plínio caiu antes, acertado por uma bala.

 

- Plínio morreu?

- A bala atingiu a coluna cervical. Teria morrido se o resgate não tivesse chegado tão rápido.

 

- E o folgado?

- Fugira faz tempo. Os amigos de Plínio também.

 

- Faz quanto tempo isso?

- Alguns meses já.

 

- E como anda o mundo desde o ocorrido?

- Continua em guerra.

 

- E hoje, como anda Plínio?

- Plínio não anda mais.

Por que não comestes do alface? (conto premiado)

 

Eu fiz o strogonoff, cortei carne desde as quatro da manhã, pus pra cozinhar, juntei o creme de leite e tudo mais, diz que depois disso não pode deixar ferver, pois não ferveu; descasquei as batatas, cortei em cubinhos como sugeristes, para que depois de fritas ficassem sequinhas; o arroz, sim, aprendi a fazer arroz, aprendi a não deixar a cebola queimar antes do tempo (descasquei cebola hoje, sabíeis?), enchi a panela de água e ela evaporou e eu tirei o arroz da panela e o coloquei na vasilha de vidro (vasilha que me destes, lembrais?); o suco: o suco comprei, admito, não havia mais tempo para buscar frutas, faltaram-me mãos para prepará-lo, faltou-me preparo para calcular a divisão de tempo nas tarefas; pois então, comprei o suco, dos mais caros, de pêssego com soja, diz que faz bem para o coração - sim, preocupo-me com o vosso coração... que mais?.. guardanapos, não havia guardanapos; nem guardanapos nem enfeites para a mesa. Aqueles soldadinhos que eu disse serem a imagem do amor a algo maior - foi o que pude inventar com o que tinha em casa; e o papel higiênico ultramacio com cheiro de pêssego calhou bem como guardanapo, combinou com o suco, nisso concordamos. Pois servi a mesa conforme os padrões da belle cousine francaise, da qual não sois fã, mas sei que admirais les grands chefs, e diagramei tudo para que vossos braços não fossem impedidos de amplos movimentos durante as elucubrações filosóficas do pós-manger. Eu perdi mais que uma manhã, eu perdi uma noite inteira sem dormir a pensar em todos os passos, em todas as alternativas que por ventura apareceriam durante a salada. Sim, nem precisei lembrar-vos que a salada vinha apenas após o prato principal, tive entretanto de bater o pé em vista de vossa insistência em deixar o strogonoff para o final, para deixar aquele gostinho bom na boca; e foi aí minha perdição. Por que vos negastes o alface? Fazia parte do roteiro, se o mocinho não mata o bandido, não pode beijar a mocinha no final! Estava tudo nos conformes até a "bendita" recusa do alface entrar em cena; era ali, durante a salada, que eu diria tudo que ensaiara por semanas, era ali que descobriríeis o quanto vos quero bem; eu começaria dizendo "Pri, preciso te dizer uma coisa", no que responderíeis, com certo olhar desconfiado, um simples "Fala"; e eu falaria, sim, ah! como enfim eu falaria...

Mas, por que, deus do céu!, por que não comestes do alface?

 

A obscura vontade de se tornar um guarda-chuva

 

 

O aneurisma cerebral do flanco inferior externo do glúteo, decorrente duma acidental distensão no músculo ventral durante a turbulenta passagem de ano, nem isso o desanimava de sua fixa ideia, seu fremente desejo - certamente pouco ortodoxo - de, quando crescesse, se tornar, perante olhar insuspeito de todos, um guarda-chuva.

 

Muito além de noventa minutos

         Sete e quarenta. O ruído metálico e agudo das compotas prateadas denunciava o quão congelante seria aquela noite. Amaral as posicionava com apreço e prática, ganhando tempo para arrebanhar clientes. Inverno corria por suas veias e ódio por suas artérias, raiva de não poder ser diferente, da obrigação de contentamento com o comum, o trivial cotidiano. Abriu uma mochila surda, seus dedos nem queriam falar muito mesmo, o frio calava. Despejou o molho em um recipiente, abriu a lata de milho, despejou o milho - quanto é? -, abriu o pacote de batata palha - dois reais ou dois e cinquenta prensado -, abriu o queijo ralado, trouxe as cebolas - me vê dois então –, - ô camarada, não tá pronto ainda, o amigo não vê que tô montando? - jogou as cebolas num dos retângulos de metal apropriados - só um minutinho, tem que cozinhar as salsichas -, jogou-as, as salsichas, na água ainda morna, o movimento logo aumentaria, pessoal não se atrasava, aquela quarta era decisiva, um casal – quanto tá o prensado? – apenas apontou a placa com os preços, não era muito educado com seus clientes (abriu a lata de ervilhas), cortesia supérflua, quartas e sábados, por ali, freguês era o que não faltava, (retirou e enfileirou catchup, maionese e mostarda) a concorrência era grande, mas tinha peixe pra todo anzol (aumentou o fogo, as malditas salsichas, tinha de lembrar de pô-las sempre por primeiro), limpou o rosto com as costas da mão, estava com febre?, começava a suar, o pessoal da gritaria se aproximava, bandeiras, tambores e pandeiros – oi, moço, troca vinte pra Linéia-do-churrasquinho? –, uniformes organizados e gritaria e batucadas e pandeiradas – claro, claro, manda um beijo para ela -, olhou em volta, arrastão das bestas, sabia que carregavam armas, não entendia como entravam com elas, sempre entravam, ouvia cada história... – vê dois completos, tio –, - prensados? –, - sim, sim, quer prensado, Glaucinho? –, sem resposta, prensá-los-ia e pronto, alcançou dois pães no pacote, apalpou-os, senis mas vivos, passasse de hoje endureceriam, cortou-os – a moça quer um refrigerante? –, montava-os ao mesmo tempo, tinha prática, o segredo era enrijecer o anular – guaraná, por favor. Quer coca, Glau... –, - não, tomo do teu, ó o preço, três pila não dá -, pôs a menor salsicha no do Glaucinho e nem pôs molho, playboy metido – vê um sem cebola, moço -, - eu quero sem milho, nem ervilha, não gosto de enlatados, se a lata estiver amassad... – deu os dois primeiros sanduíches, pegou dez reais, deu cinco de volta – e o guaraná, moço – recebeu os cinco, deu dois de troco, abriu o isopor, água gelada, doeu nos ossos, tirou o refrigerante e o entregou – quero sem salsicha -, gente estranha, cada uma que aparece... – sem molho nem batata –, - sem nada, só salsicha -, - completo, sem queijo, nem ervilha -, - também quero tudo, menos molho e cebola -, Anselmo não chegava, miserável, tinha dado uma chance para o garoto, salário bom, tudo em cash, sem burocracia, não precisava pagar imposto, só trabalhava ali nas quartas e sábados, só dia de jogo, pôs a mão no bolso, oito e quarenta e cinco, mais uma hora de correria ainda, até o início, depois duas horas de frio, saudades do verão, duas longas horas até que a boiada saísse e, como bois, comesse cachorro-quente. – moço, sabe onde compra ingresso? -, tinha de perguntar ao Anselmo se boi comia cachorro-quente – não tem mais, só com cambista -, - vê um prensado, amigão – bebeu um gole d’água, ajeitou a manga da camisa, alcançou os pães... – troco pra Linéia –, pôs a salsicha, o molho, a ervilha e o milho, a cebola, catchup, maionese – quer mostarda? -, mostarda, queijo ralado, - dois e cinquenta -, equilibrou a batata-palha para finalizar, tinha de ir ao banheiro – e para tomar? -, cadê o Anselmo, porra, arranjaria outro – coca -, - cinco e cinquenta, por favor, ô Leco, quer me ajudar aqui -, Leco veio correndo, dez pila até o fim da noite, sem burocracia, Caso Anselmo resolvido, olhou o relógio, nove e três, - oi, o Senhor sabe se ainda tem ingresso? a semana passou muito rápido e não consegui comprar e -, quem dera veloz fosse a noite – não tem não, senhora, nem com cambista -, - um sem molho e sem batata -, queria estar em casa, ver tudo pela tevê, com replay e show do intervalo – pra beber? -, - fanta -, fantasiava com praias, sol, replays, mulheres bronzeadas, e tinha de conviver com aquele bando de homem fantasiado, com aquela massa de desocupados - Leco, alcança uma fanta pro moço -, pés-rapados, políticos, abonados, gente comum, odiava gente comum, principalmente misturada com mais gente comum – cinco reais -, o frio tinha amainado, respirou fundo, ainda saía fumaça da boca, dedos congelados, nove e trinta e um, o frio não tinha dado trégua mesmo, nove e trinta e dois, a maioria já estava dentro esperando e procurando seus lugares, agora eram numerados, pouca gente na rua, gente comum, odiava-os todos. – Leco, tá mais tranquilo agora, leva uma coca pra Linéia, diz que mandei um beijo e traz um churrasquinho, por favor, não aguento mais o cheiro dessa salsicha...

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